Capa mole c/ dobra, offset, 165x115mm,
160 pp., 500 exemplares.


2 Cavalos de Turim


Joana Bértholo e Rui de Almeida Paiva

textos: Joana Bértholo e Rui de Almeida Paiva
edição: Rui Almeida Paiva e Sofia Gonçalves
design: Sofia Gonçalves



A relação cinema-literatura parece por vezes uma via de sentido único. É frequente a adaptação de romances a filmes, mas mais raro o inverso.
Dois escritores, Joana Bértholo e Rui de Almeida Paiva, sentam-se então perante um filme — O Cavalo de Turim (2011) de Béla Tarr —, e escrevem. Não se trata apenas de usar o estímulo das imagens em movimento, nem do som, como inspiração para um texto, mas de se aproximar tanto quanto possível da ideia de adaptação, da mesma forma que um cineasta leria um livro a partir do qual pretende fazer um filme.



Virginia Woolf, em “The movies and reality” (1926), diz-nos o seguinte:
«(...) os cineastas parecem insatisfeitos com fontes de interesse tão óbvias como a passagem do tempo e a dimensão sugestiva da realidade. Desprezam a fuga das gaivotas, os navios no Tamisa, o Príncipe de Gales, a Mile End Road, Piccadilly Circus. Eles querem melhorar, alterar, fazer a sua própria arte – naturalmente, pois muito parece estar ao seu alcance. Muitas outras artes pareciam prontas para oferecer a sua ajuda. Por exemplo, havia a literatura. Todos os romances famosos do mundo, com os seus personagens bem conhecidos, e as suas cenas famosas, apenas pediam, ao que parecia, para serem colocados nos filmes. O que poderia ser mais fácil e simples? O cinema caiu sobre a sua presa com imensa rapacidade e, até ao momento, subsiste em grande parte a partir do corpo da sua infeliz vítima.»

O cinema e a literatura, desde o início da sua coexistência, como demonstra o texto de Woolf, são práticas que ora cooperam ora competem enquanto reflexos potentes da realidade. Contudo, quando falamos de cooperação, em particular nos processos de adaptação, parece só existir uma via possível: o cinema a olhar para a literatura.

A adaptação é um processo canónico que corresponde à utilização de uma obra para a criação de uma outra obra original. Qualquer adaptação engendra uma força tensional: entre a dependência e a libertação da fonte original, entre o familiar e o novo, entre as semelhanças e as diferenças. Contudo, a nova criação é sempre uma revisão da obra adaptada e implica um determinado grau de compromisso. Cada obra que resulta de um processo de adaptação é, deste modo, um palimpsesto – uma obra escrita por cima de outra obra –, e reclama a memória da sua fonte para mais tarde a fazer ressoar ou ecoar na memória de quem a recebe.
PRÉMIO DESIGN DE LIVROS 2020 (DGLAB).

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Com a tempestade instalou-se um cinzento imperturbável e um chiado constante, que de tão presente se tornou silêncio: como quando o preto toca o branco, mas não se misturam, apenas se igualam.
A Filha termina enfim. As cascas e os restos de batata esfarelada repousam frios sobre o prato. Deita tudo num balde para dar aos animais, gesto que guardou do tempo em que eram plural, e passa os pratos por água. Olha o Pai à janela, será que também ele espera? Espera um corte, um daqueles que o pudesse levar para outro espaço-tempo, e ele no plano seguinte não tinha cedido à vontade do corpo e ainda teria as duas mãos capazes. Um corte, outra perspectiva. Um corte, tudo resolvido. A dança das folhas secas lá fora mesmeriza-o. O fogo a crepitar mesmo ao lado dele. Está frio. A meditação é um lugar frio. Na estrebaria mesmo ao lado da casa, no escuro, silencioso, o Cavalo que ainda é cavalo apesar de ser branco.

Joana Bértholo, 2 Cavalos de Turim



O Vento zumbe, assobia. A música ausenta-se. O Vento assobia e a lenha no fogão crepita. Eu vejo a lenha a crepitar. O Velho, sentado diante da janela, pensa nos campos sacudidos pela Tempestade. Em como ela toca na paisagem à bruta, produzindo poeira. Não há meio de repousar. Deve estar exausta, a Tempestade. O Cinzento toca. Tudo é tocado por ele. E fica cinzento. Nem imagino como será. Deve ser algo que nos deixa leves e nos faz sair do chão como poeira. Até o Vento é cinzento. E preto.
— Lá, é cada um por si, e o Tempo por todos... Cá estamos nós, aqui estamos nós, quem sabe. Tu e eu, aparentemente dois, a existir como podemos... Temo-nos aguentado, não temos? Vamos sobrevivendo... A Tempestade é só um teste à nossa capacidade de resistência. Quanto tempo falta para eu sair desta cadeira? Estou exausto...
— Doze segundos.
— Por ti vou aguentar, para o teu bem. Para o nosso bem. Está a resultar. Só tens de me perdoar. Não foi por mal. Perdoas-me?
— Por pouco. “Por pouco” chega?»

Rui de Almeida Paiva, 2 Cavalos de Turim

JOANA BÉRTHOLO, escritora e dramaturga, nasceu em Lisboa, em 1982. Licenciada em Design de Comunicação na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e Doutorada em Estudos Culturais pela European University Viadrina, na Alemanha. Publicou na Editorial Caminho vários romances, livros de contos e literatura infantil. Ecologia, o seu último romance, foi semifinalista do Prémio Oceanos 2019, finalista do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, finalista do Grande Prémio de Literatura DST e nomeado para o Grande Prémio Adamastor de Literatura Fantástica Portuguesa 2019. O Museu do Pensamento recebeu o prémio de melhor livro infantojuvenil da Sociedade Portuguesa de Autores 2018 e do Prémio Literário de Fátima na mesma categoria. Recebeu diversos outros prémios: Prémio Jovens Criadores 2005; Menção Honrosa no Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro (1998); Melhor Argumento para BD (SOSracismo e editora Baleiazul, 1999); Prémio Escrevendo a Partir da Pintura (Fundação Calouste Gulbenkian, 2000); Melhor Ensaio O Movimento Olímpico (Comité Olímpico Português, 2000); Prémio Jovens Criadores – Literatura (Clube Português de Artes e Ideias, 2005); Menção Honrosa no Prémio UP-Utopia (Universidade de Letras do Porto, 2005); 1.º lugar no Concurso Literário Persona (2006). E finalmente o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho (CMLoures, 2009) para o seu primeiro romance Diálogos para o Fim do Mundo (editorial Caminho, 2010).


RUI DE ALMEIDA PAIVA tem trabalhado para diversos projectos de teatro, dança e cinema.
Conta com os seguintes livros publicados: A Mala Rápida do Senhor Parado(2010, editora Trinta por Uma Linha); Quem viaja encontra os segredos antigos mas perde os sapatos novos (2014, Dois Dias Edições); Efeito Kuleshov, com Joana Bértholo e Sofia Gonçalves (2014, Dois Dias Edições); Ministério da Educação (2015, editora Douda Correria); O Ploc do Pollock (2016, editora Caminho); Canções de Embalar Belos Planetas Cansados (2018, editora Douda Correria); Quem Vem Lá? (2019 , editora Caminho); Se o Mundo é redondo o Pensamento é ao quadrado (2019, Dois Dias edições). A partir de 2017 iniciou colaboração teatral com Bruno Humberto. Desde então escreveram e encenaram as peças O Ploc do Pollock (2017), O Sequestro(2018), A Vila (2019), Interrupção – Pausa para Intervalos (2020),Peça para Intervalos (2021).
Fez mestrado em Edição de Texto, na FCSH-UNL, em 2013 – com a tese Jean Rouch: o cineasta da máquina de escrever ou o escritor da câmara de filmar, explorando a hipótese do trabalho de edição a partir da tradição oral. Escreveu e realizou o filme A Ilha Invisível (Produções Cedro Plátano), estreado no DocLisboa 2018. No âmbito da edição, fundou em 2011, com Sofia Gonçalves, a editora Dois Dias.
Tuesday Oct 5 2021