Capa mole c/ pintura dos topos do livro a negro, offset, 195x125mm,
192 pp., 300 exemplares.


Cardeal Pölätüo
Um romance


Stefan Themerson

texto: Stefan Themerson
tradução: Paulo Alexandre Moreira
edição: Rui Paiva e Sofia Gonçalves
design: Sofia Gonçalves





Apollinaire encontrou finalmente um pai — Cardeal Pölätüo —, um pai na melhor tradição do ser pai, crítico do seu filho delinquente juvenil — nascido poeta e assim feito por sua mãe, que o carregou o tempo adequado a um génio e, como tal, um irresponsável e conspirador secreto. Tal como Abraão, Cardeal Pölätüo está disposto (determinado, na verdade) a sacrificar o seu filho — o que Abraão apenas fez em resposta a Deus. Cardeal Pölätüo é responsável perante uma augusta instituição a cujos olhos o homicídio da Alma (seduzindo a fé para longe do seu dono por direito) é infinitamente pior do que o homicídio do corpo. O Cardeal envelhece para se deliciar na beleza pura do batom rosa-nacarado na sua mão, e para compilar a Filosofia do Pölätüismo — um tratado para uma boa relação entre religião e ciência, à glória de Deus.

A capa deste livro baseia-se no mosaico Mondriano que revestia o chão da capela privada do Cardeal Pölätüo. É ainda uma homenagem à capa da 1.ª edição de Cardeal Pölätüo (Gaberbocchus Press) desenhada pelo próprio Stefan Themerson.


︎︎︎︎︎︎


Por vezes chega-se mais longe, permanecendo, persistentemente, no mesmo lugar. Por exemplo:

Na gaveta do canto inferior direito da sua secretária, fechado num cofre incrustado de madrepérola, o Cardeal guardava um pedaço de atacador de bota. Berkeley, o seu pequeno cãozinho, conhecia muito bem a gaveta. Corria para ela, cheirava as partes de metal e cravava os expectantes olhos negros de cabrito no Cardeal. E Pölätüo rodava a chave na fechadura, abria a gaveta e retirava o pedaço de atacador da caixa incrustada. Berkeley cheirava-o avidamente e, em seguida, voltava-lhe as costas. O mordomo levantava depois o cão, e o Cardeal inclinava-se para prender o atacador à pequena cauda trémula do animal. E Berkeley ladrava e corria em círculos sobre si próprio, iniciando um magnífico jogo de perseguição do atacador. Era um jogo a que o Cardeal Pölätüo chamava «Berkeley» ou, na sua versão mais complicada, «A Demonstração Solipsista de David Hume».

Normalmente, Pölätüo esperava que Berkeley se cansasse da perseguição interminável e se deitasse na almofada verde. Mas dessa vez fez um sinal impaciente ao mordomo para que retirasse Berkeley do seu gabinete. Aproximou a poltrona da secretária, mergulhou a pena na tinta e escreveu no alto de uma folha branca de papel:

1: No que à mente de Berkeley diz respeito, só existe a Ideia de um cordão preto que foge do seu olhar, ou a Ideia de um cheiro que se afasta do seu nariz; a Matéria não existe para ele, a menos que seja o resultado de um processo lógico, uma parte constituinte da Mente de Deus.
2: Hume obriga Berkeley a perseguir o atacador. E depois a comê-lo, e à sua cauda, e em seguida tudo o resto, desde a cauda à cabeça em que a Mente está contida, de modo a que acabe por não restar nada além da Ideia.

Stefan Themerson, Cardeal Pölätüo.
STEFAN THEMERSON (Plock, Polónia 1910 — Londres, Inglaterra 1988) foi escritor, cineasta experimental, filósofo e poeta. Em 1931, conhece Franciszka Weinles, estudante de arte, com quem se casa e cria grande parte da sua obra, em registo de co-autoria.
Com uma obra vasta e heterogénea, Themerson escreveu romance, poesia, ensaio, uma peça para teatro, uma ópera (libreto e música), um livro sobre fotogramas e cinema experimental, bem como um conjunto de livros para crianças que Franciszka ilustrou.
De 1948 a 1979, Stefan e Franciszka Themerson criaram a editora Gaberbocchus Press, cujo objetivo era produzir “best lookers” em vez de “best-sellers” — ou seja, a concepção de cada livro deveria ser uma expressão do seu conteúdo. Publicaram obras de Guillaume Apollinaire, Kurt Schwitters, Bertrand Russel, bem como as primeiras traduções para língua inglesa de Ubu Roi de Alfred Jarry e Exercícios de Estilo de Raymond Queneau. Pela Gaberbocchus Press, Stefan Themerson publica: Professor Mmaa’s lecture (1953), Cardinal Pölätüo (1961), Bayamus and the theatre of semantic poetry (1965), entre outros.
Tuesday Oct 5 2021