Conferência-performance. 17 de janeiro de 2019, A Sala.

O avesso do cenário
(ou o triunfo dos conceitos vagos).
Vida e obra de René Daumal.





C/ Bruno Humberto (a Voz).




Boa tarde.
Ao contrário do que é comum nestas ocasiões, não vamos perder muito tempo em elocuções iniciais e vamos directos ao que aqui nos trás: René Daumal.



“O avesso do cenário” — título de um poema de René Daumal compilado em O Contra-Céu que dá título a esta conferência e que é afinal o alibi para este nosso encontro — começa assim:
“Chegava alguém, um espírito de discurso férreo, dentro da tua cabeça, e falava-te das brumas deste mundo (dois pontos)”


(VOZ)

A Palavra instala-se na garganta, e abre as suas portas.
A Respiração concentra-se no peito, e distende as suas costelas.
Ora a Respiração procura sair, e a Palavra abriu o orifício da garganta.

A palavra sensível está sediada no aparelho vocal. Cada som, cada palavra, assim que os imagino, dispõe este aparelho de uma forma particular; basta-me portanto enviar o ar armazenado nos pulmões através da laringe e da boca, para emitir esse som, para pronunciar essa palavra. A substância da palavra é então a energia respiratória, o seu sentido é-lhe imposto pela palavra imaginada e, para além da palavra, pela ideia apreendida no instante em que a palavra surge.
É uma palavra que tende incessantemente para a Palavra absoluta, preparando assim os órgãos da elocução no poeta. Esta absoluta Palavra-não-falada, é o sentido verdadeiro do poema. É esta Palavra impronunciável que, sob pressão da respiração impaciente, se deforma ao ponto de imprimir ao aparelho vocal uma disposição tal que permite que o ar possa escapar-se. Por outras palavras, para a respiração se libertar, é necessário que a Palavra impronunciável se degrade pouco a pouco, até se tornar pronunciável, funcionando como uma válvula de segurança para o excesso de Evidência que poderia matar o poeta.



Dividimos esta conferência em seis partes:
1) começar pelo começo;
2) o primeiro despertar de Daumaul;
3) um parênteses para falar das suas obstinações;
4) obra escrita;
5) a segunda vida de Daumal (ou) a experiência Gurdjieff;
6) um pouco antes do logo depois da vírgula.

Acabados de chegar ao conforto de uma estrutura, de um plano para esta conferência, temos que admitir que estamos perante um grande dilema, talvez o maior dos dilemas… bem… se quisermos ser razoáveis… estamos diante de um dos maiores dilemas da humanidade: a linguagem. O que vos temos para dizer, as regras elementares de retórica são apenas uma tentativa vã de controlar o momento, eventualmente de vos controlar, capturando por uns minutos um pouco da vossa atenção. Não poderíamos seguir uma via mais errada, querendo falar sobre René Daumal.
Conscientes do erro e dos riscos que tal opção pode oferecer, continuamos…
Daumal exige-nos reavaliar a nossa realidade, não apenas pela via intelectual, mas convocando todas as nossas fibras e moléculas. Impele-nos a deixar para trás das costas a percepção imediata da realidade para que esta não se construa sobre os dogmas do costume.
Esta realidade que não se constrói sobre os dogmas do costume revela-se em momentos privilegiados, ou por vezes inesperados. Apanha-nos desprevenidos quando vamos ao supermercado, apanhamos o autocarro ou lemos um livro. Daumal preferia a ginástica ou as drogas — é tudo uma questão de método.

Para nos iniciarmos na vida e obra de Daumal ou, por outras palavras, naquilo que é a sua “mensagem”, temos, portanto, que inverter a noção de realidade, tal como nos sugere este diagrama.



Mas para já para já há que…

1) começar pelo começo

René Daumal nasceu em França, mais precisamente em Boulzicourt, na região francesa das Ardenas, tal como Rimbaud. Desconhecemos as qualidades da região para gerar assim de uma assentada dois poetas malditos. De acordo com o Censos de 2014, o último a que tivemos acesso, Boulzicourt tem 961 habitantes, e uma área de 6,65 km2. De hoje a dois dias, os habitantes de Boulzicourt poderão assistir ao espectáculo Turlututu, na Mediateca de Vayelles.
Daumal nasceu portanto em Boulzicourt, a 16 de Março de 1908, às 6h da tarde. Aos 6 anos é assaltado pela ideia de morte e pela angústia do absolutamente nada.




(VOZ)

À  NADA

Que bela carnificina sem cólera em tua honra, olha:
nesta noite polar tão branca quanto negra,
neste coração devastado tão fogo quanto gelo,
nesta cabeça, grão de chumbo ou puro espaço,
vê o vazio perfeito que se escava para tua glória.

Nem branco, nem negro, nem fogo, nem gelo,
nem grão de chumbo nem puro espaço,
aquele mundo está mesmo perdido!

A morte, o nada, todas estas preocupações não lhe oferecem tréguas, e no início da adolescência, vê-se diante de outro dos seus maiores terrores: o desconhecido. Durante esta época leva a cabo um variado número de experiências numa tentativa de compreender a morte, de que falaremos mais à frente.


A morte, o nada, todas estas preocupações não lhe oferecem tréguas, e no início da adolescência, vê-se diante de outro dos seus maiores terrores: o desconhecido. Durante esta época leva a cabo um variado número de experiências numa tentativa de compreender a morte, de que falaremos mais à frente.




(VOZ)

A  DESILUSÃO
Branco e preto e branco e preto,
atenção, vou ensinar-vos a morrer,
fechem os olhos, cerrem os dentes,
clac! como vêem, não é difícil,
não tem nada de assombroso.

Falo-vos sem paixão,
Preto e branco e preto e branco,
clac! como vêem, habituamo-nos depressa,
falo-vos sem amor,
e, no entanto, sabem bem…
— há que ser evidente até ao absurdo –

Branco e preto e branco e preto e preto e branco,
se as nossas almas trocassem de corpos,
nada se alterava,
então deixem de falar em corpos e almas.

Branco, preto, clac! é a única coisa
que podemos compreender em conjunto,
(mas isso não tem nada de trágico, pois não?)

Falo-vos sem paixão
branco, preto, branco, preto, clac,
e é o meu eterno grito de moribundo,
este grito branco, este buraco negro…
Oh! Vocês não ouvem,
vocês não existem,
estou só a morrer.


Ainda jovem percebe que a filosofia ocidental entra em loop depois de Sócrates e que as religiões organizadas são incapazes de alimentar o espírito. No ocidente, só a poesia lhe permite aceder ao único conhecimento concreto.

Ainda que em permanente tormenta, ebulição, a voz de Daumal, d’O Grande Jogo ao Monte Análogo, é de extraordinária coerência, obtida pela dispersão programática dos seus passos. No ano de 1927, em vésperas de exames escritos, cai de cabeça a fazer ginástica, perdendo a memória durante algumas horas, e acabando por fracassar no acesso ao ensino superior.

(VOZ)


FOGOS  À  DISCRIÇÃO
O ser humano é uma sobreposição de círculos viciosos. O grande segredo é que giram bem sozinhos. Mas os centros desses círculos também giram, eles próprios, em círculo; o homem sai do último para voltar a entrar no primeiro. Esta revolução não escapa ao olhar dos sábios, só eles escapam ao turbilhão e, ao abandonarem-no, contemplam-no – Harmonia das esferas, cosmologia dos corações, astros-deuses do pensamento, sistemas ardentes forjados de carne para carne, pois todo o sofrimento é abandono da carne, quer ela seja vermelha de sangue, alaranjada de sonho ou amarela de meditação; os astrolábios perfura-coração aquecidos ao rubro, longe das armadilhas basculantes, sob as escadarias do demónio, e o ar forte do mar alto que começa já a espessar-se em lodo.


Cai de cabeça. A queda acaba por ser o gatilho para aquilo que muito consideram ser…

2) o primeiro despertar de Daumaul.

Nesse mesmo ano, em 1927, (rrrr)René Daumal funda com (rrrr)Roger Gilbert-Lecomte, (rrrr)Roger Vaillant e (rrrr)Robert Meyrat, o movimento de investigação literária e filosófica Le Grand Jeu. Os “4 R’s” ou os “Irmãos Simplistas” — como os próprios se intitulavam — conhecem-se 5 anos antes, em outubro de 1922 no liceu de Reims, todos camaradas da turma do 3.º ano. Rapidamente forma-se entre eles uma amizade fulminante regada por uma paixão pela poesia e por um humor patafísico. O lema do grupo: “ou o absoluto, ou não importa o quê” — que alguns autores resumem como a inauguração da tradição do “não-importa-o-quê-ismo”. A esse respeito, num dos textos do grupo lê-se: “Nota Bene — A todos os que nos perguntarem sobre o assunto d’O Grande Jogo, responderemos uma vez para sempre a qualquer pergunta: ‘Sim e não’.”

Mas no seio dos “4R’s”, O Grande Jogo jogava-se essencialmente a duas cabeças: a de Roger Lecomte e de René Daumal. Se Lecomte rapidamente ocupa o papel de mestre louco do grupo — loucura que alguns atribuem à sua experiência de asfixia durante o nascimento —, Daumal era a razão que não se furtava, contudo, a testar todos os limites possíveis do real. A receita: entre os dezasseis e os dezanove respira ciclicamente tetracloro de carbono, um poderoso anestesiante para alcançar um estado próximo do coma. Estas e outras experiências com drogas (ópio, haxixe, etc.) não são isentas de risco como Daumal sabe. Ao torná-las hábito, destrói conscientemente a sua saúde, tal como um cientista inocula um vírus para conhecer os seus efeitos — “com estas experiências adquire-se uma certeza”, diz-nos, sente-se o medo, o frisson do horrível, do desastre. A todo o custo, queria chegar a uma revelação sensível, partindo do pressuposto: “É quando deixa de procurar a liberdade, que um Homem se liberta”.




(VOZ)


Colocando no zénite o teu olho supremo, observa,
pronunciando do zénite o teu EU supremo:
brotando da pura visão, a luz brilha.
Brilha de Evidência Absurda, da certeza dolorosa que procura a palavra tão claramente impossível de encontrar, tão simplesmente inefável, que procura a Palavra una que proclama a Evidência absurda.
(…) (Não estás a perceber bem? Mas como poderias compreender? Já experimentaste, ao menos? Ainda não. Adia-se; vai-se sempre a tempo; além disso, está-se mesmo a ver antecipadamente do que se trata… – mas as coisas não são assim. Tu próprio já disseste tantas vezes que não se pode explicar a um cego de nascença o que é a cor azul…)
Aquele que vê o absurdo sofre este suplício: ter a Palavra-do-fim-de-tudo na ponta da língua, mas impronunciável.


Ao contrário de Lecomte, que se afunda totalmente na alienação das drogas, para Daumal estas servem-lhe enquanto método do que chama de “conhecimento experimental”. A droga é, afinal, um programa. Diz-nos Daumal:
“(…) a situação onde nos encontramos é desesperante, estamos mais do que a tempo de ensaiar uma saída. (…) A nossa situação é semelhante a náufragos prestes a afogarem-se. Pelos seus próprios meios, podem manter a sua cabeça fora de água. Pelos seus próprios meios, o Homem pode ir até um certo ponto. Se não chegam reforços exteriores, afogar-se-á. Acabaram de me lançar uma bóia salva-vidas. Vou começar agora a procastinar?”


(VOZ)


Estava hesitante em publicar esta colectânea. Sei que não se aprende a nadar de um momento para o outro, que antes de se saber que há rios para atravessar, é preciso chapinhar, por pura diversão, para se conseguir avançar dentro de água. Mas não é preciso transformar num espectáculo essa nossa aprendizagem. Porém, algumas pessoas que estimo garantem-me que já se avistam costas reais nestes meus escritos, que eles já não me pertencem e podem ser úteis a outros. Acedo a publicá-los então, mas com algumas precauções. (…) Desaprender a sonhar acordado, aprender a pensar, desaprender a filosofar, aprender a dizer, não são coisas que se façam de um dia para o outro. No entanto, já só nos restam poucos dias para o fazer.


Em 1928 é impresso o primeiro número da revista O Grande Jogo, e dois outros números se seguem nos dois anos seguintes. E é tudo. O quarto número, enviado para a tipografia, nunca chegou a ver a luz do dia por falta de dinheiro para a sua produção. Daumal ocupava-se de todos os assuntos operativos da revista: reunia os textos, editava, estabelecia a comunicação com a tipografia em Toulouse, era responsável pela publicidade e distribuição, bem como de mil e uma tarefas ingratas que surgem da edição de uma revista.

Há quem entenda O Grande Jogo como um epifenómeno poético inconsequente típico da juventude ou como um movimento de rara crítica e acuidade, que só a juventude permite, ao colocar questões raras e fundamentais que mais ninguém ousa pronunciar.
Todos os dogmas, sistemas, teologias e todos os modos de pensamento racionalista serão combatidos sem concessões e com a maior energia. Tudo para encontrar a Palavra Primordial, a Revelação Primitiva.




(VOZ)


Palavra que condensa toda a luz, Palavra ainda não falada, que contém toda a verdade, Palavra que ainda sofre por ser muda-como o urro silencioso entre os maxilares paralisados do tetânico.

Sempre prestes a ser pronunciada, essa Evidência é a Palavra única e suprema, que nunca é dita mas se esconde atrás das palavras dos poetas e as sustém. Se o Poeta pronunciasse essa palavra, o mundo inteiro seria o seu Poema, teria aniquilado o mundo ao recriá-lo em si. A interdição de pronunciar as grandes palavras sagradas traduz essa potência terrível do Verbo e a impotência humana da nossa palavra.


Mesmo em águas turbulentas, O Grande Jogo resiste ao naufrágio 10 anos — de 1922 a 1932. Daumal afasta-se do movimento por volta de 1931, ao conhecer Alexandre de Salzmann, que lhe apresenta a escola do famoso «taumaturgo» e mestre espiritual Georgi Gurdjieff. Em Dezembro de 1932, a ida de Daumal para a América como secretário da trupe de Uday Shankar é a última gota para a desintegração do grupo. É precisamente durante a sua viagem aos Estados Unidos da América, que começa a escrever A Grande Bebedeira, um romance-ensaio que reflecte a crise no seio de O Grande Jogo e constrói uma crítica ácida da sociedade.


3) um parênteses para falar das obstinações de Daumal

Auto-didacta, estuda obstinadamente o sânscrito para poder aceder directamente às grandes escrituras da Índia. Destas, interessa-lhe estudar a sua retórica abstrusa e levar esse ensinamento para a sua própria escrita. É mais tarde reconhecido como especialista na cultura hindu com traduções de um conjunto de textos sagrados.

Levando uma vida no limite da precaridade, Daumal não consegue pagar uma viagem ao Oriente. Esta impossibilidade de se deslocar ao centro-de-onde-emana-tudo leva-o a treinar um outro método fundamental: A-não-viagem-a-territórios-longínquos.


(VOZ)

Se agora imaginarmos o território em plano horizontal, obtemos este esquema. Reparem que a própria região do Monte Análogo não deve sofrer qualquer anomalia especial sensível, dado que devem poder subsistir nela seres como nós. Trata-se de um anel de curvatura mais ou menos largo, impenetrável, que, a uma certa distância, rodeia o lugar de uma muralha invisível, intangível; graças ao qual, em suma, tudo se passa como se o Monte Análogo não existisse.



Grande admirador de Alfred Jarry, dedica-se à «ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as excepções» e «ao que está acima do que está além da física», publicando, entre 1934 e 1935, diferentes escritos ou ensaios patafísicos.





(VOZ)

e com o som a bater na massa, a multidão nova germinava, e ele voltava a entrar dentro de si poderosamente e pensava-se até à epiderme extrema de tudo. A pele primeira ainda tambor vivo minúsculo, nomeado o infinito e grande fonte de controvérsias, organizava-se já num turbilhão e o concerto passou a ser, a pouco e pouco, o da maldição;
e o círculo fechado atava-se num riso, seria ontem? Será amanhã? Mas a cissura não atinge o seu Nada-disso, aqui nomeado primeiro ou último, em qualquer lugar, por qualquer ordem, indefinidamente escondido atrás de Ele-mesmo-não-não-é-Ele, e as rugas só surgem nos povos que pensam por um instante: vamos recomeçar, e depois esquecem-se disso, e segue-se uma nova volta da roda.


A não-viagem, a patafísica, as escrituras orientais asseguram a Ele-mesmo-não-não-é-Ele uma…

4) Obra escrita.

“(…) escrever é um exercício muito sério e recheado de risco: dizer aquilo que conheço, nem mais nem menos”, afirma Daumal numa das muitas cartas dirigidas a amigos.




(VOZ)

Despertos pelo amor, os animais do teu corpo querem sair.
A serpente desenrola-se na base da tua medula.
O leão espreguiça-se dentro do teu peito.
O elefante bate na parede da tua fronte.

A matéria-prima da emoção poética é um caos cinestésico. Uma mistura confusa de emoções diversas começa por ser sentida dolorosamente no corpo, como um burburinho de vidas múltiplas a tentarem escapar-se. É habitualmente este sentimento penoso que força o poeta a pegar na caneta, quer o sinta como uma necessidade vaga e imperiosa de exteriorizar-se, quer de forma menos grosseira.


Em 1936, é aclamado pela crítica com o livro de poesia O Contra-Céu. Esta coleção de poemas leva-o a ganhar o Prémio Jacques Doucet.
Termina A Grande Bebedeira em 1937. Editado no ano seguinte pela Gallimard, é o seu único romance publicado em vida.
A partir de 1939 é atormentado pela tuberculose. Nos Alpes dá início à sua última expedição literária — O Monte Análogo — que conta a história de um grupo de homens que tenta alcançar uma montanha humanamente imperceptível, situada no meio do oceano. O grupo leva consigo diferentes instrumentos científicos e, sobretudo, a crença de que «a porta do invisível tem de ser visível».

A morte aproxima-se, mas façamos um último flashback para chegarmos ao que muitos autores apelidam como…
5) a segunda vida de Daumal — a experiência Gurdjieff, o falso mercador de tapetes ou o homem que pintava pássaros vulgares de amarelo para os vender como canários.

A vida de Daumal pode ser dividida em DOIS momentos: antes e depois de conhecer Alexandre de Salzmann, discípulo de Gurdjieff desde 1913. (Também podemos dizer que há um Daumal durante O Grande Jogo e depois de O Grande Jogo, um Daumal marcado pela personalidade de Lecomte ou pela personalidade de Salzmann, e assim por diante…). O encontro obriga-o a rever as suas posições de pendor anárquico, as experiências limite como condição sine qua non para atingir uma suposta verdade, e uma concepção supra-intelectualizada do esoterismo e do ocultismo.
Desta experiência confirma que a Verdade, o Conhecimento escondido e Primordial existem e que mesmo no coração do Ocidente, em pleno séc. XX às portas da 2.ª G.M., era possível aceder-lhes.


(VOZ)

Eu não queria, pensei mais tarde, amar ninguém na mentira que era a minha vida. Queria prejudicar-me apenas a mim, o que é impossível.
E mesmo então, eu já dizia:

Como uma órbita privada do seu astro
pensava-me em círculos vazios sobre mim mesmo;
persegui luas fantasmas,
consolei-me com demasiados falsos sóis.

Era portanto um juramento de verme branco. Sabeis que, assim que saem do ovo, os vermes brancos juram nunca se dirigirem à luz; pois o sol iria secá-los, impedindo-os de cumprirem o seu destino que consiste em só se dirigirem à luz depois da metamorfose e do perjúrio. A peça seguinte já cheira a crisálida.


Crê-se que, em 1938, no Café de la Paix, na Rue des Colonels-Renard, Daumal é finalmente apresentado a Gurdjieff, um homem simultaneamente opaco e fascinante (para uns guru, para outros um puro charlatão). O seu encolher de ombros, os seus ataques estridentes de riso revelam-lhe um homem autêntico, diferente do usual mestre. Admirador de Jarry, aos olhos de Daumal, Gurdjieff exibia semelhanças irrefutáveis: um gosto permanente por desafiar os paradoxos e disfarces típicos do pensamento a partir do humor, um prazer férreo por destruir as coerências ou incoerências morais, sociais, intelectuais, o mesmo gosto pela irreverência, o mesmo heroísmo à margem e a mesma grosseria.

A partir dos ensinamentos de Gurdjieff, Daumal evitará a tensão supérflua dos músculos, o gasto desnecessário de energia com problemas, ódios, desejos, alarmes, o fluxo ininterrupto e incontrolado de pensamentos, o gosto de falar e fazer-se ouvir, de mudar incessantemente de ideias e sentimentos. Procurará atender assiduamente à denominada Unidade de Intuição Contemplativa e pertencer ao Grupo, com um G maiusculo. O Grupo era uma elite de escolhidos, “porque se o conhecimento fosse partilhado com todo o mundo, ninguém receberia nada”.

Daumal e a sua mulher Vera encontram-se com o Grupo em Sèvres a partir de 1934, numa casa onde todas as tardes da semana se praticava O Trabalho, com um T Maiusculo. O Trabalho pode ser defenido como um conjunto de exercícios de ginástica ou ioga, ou espiritismo, ou psicanálise ou algo da estirpe “impossível de catalogar”.

O Trabalho era composto por exercícios quotidianos, de complexidade crescente, para a aquisição de um controlo perfeito de funções e regimes de imunidade contra todo o desejo e todo o medo. Nenhuma literatura ou conhecimento intelectual podiam substituir estas práticas.

Entre estas, destacamos o exercício do Stop! — o melhor treino de imobilização da vontade. Uma palavra, um sinal conhecido por todos e emitido pelo instrutor, e todos os alunos deveriam suspender instantaneamente os seus gestos, recriando pela casa verdadeiras composições esculturais vivas. Manter os olhos no ponto onde se encontravam precisamente antes da emissão do sinal, a boca entreaberta, reter o sorriso, se existisse, manter uma pose até que um sinal contrário os permitisse voltar ao estado anterior à suspensão. O jogo poderia levar à exaustão ou até que alguém tombasse fatigado.


(VOZ)


E a Palavra fala!
E a Respiração respira!
A Palavra liberta as coortes da linguagem.
A Respiração anima e move as palavras.


Outro exercício: imitar a dança dos Derviches ao som da música de Gurdjieff. Os Derviches são uma ordem de bailarinos da Turquia, fundada pelos discípulos do grande poeta Sufí Jalal al-Din Muhammad Rumi no século XIII, que executam uma dança-meditação masculina chamada Sema, entendida como ritual de purificação, e rica em ressonâncias cósmicas e metacósmicas.

Outros exercícios habituais na casa de Sèvres: pronunciar a palavra EU em alta voz e verificar onde é que o fonema ressoa no corpo. Responder a questões sem desacelerar ou interromper o ritmo das palavras. Repetir palavras de diversas tonalidades, em velocidades variáveis. Contar para trás.

(VOZ)

E digo: Eu! E o ódio isola-me, torturando o NÃO na complexidade da minha forma, eu cujo NÃO evocou tudo isto, viu todas as coisas uma só, a Negada diante do NÃO a afirmar-se, e que entre ela e ele fez a união;
há algumas juntas nesta armadura, para deixar passar raramente o amor, geralmente gestos de terror, de alegria e de desespero, trocados com o Outro, através das juntas de outra armadura.


De quando em vez, o Grupo dedicava-se a leituras: como as do livro de Ouspensky e das primeiras páginas traduzidas do Relatos de Belzebu ao seu neto, um livro de Gourdjieff.

Mais tarde, a mesma maldição dos agrupamentos marginais assolará O Grupo. Tal como a equipa d’O Grande Jogo se reconhece deslocada após a crise de 1929, o Grupo de Sévres, dez anos mais tarde, é atingido pela guerra e perde a sua coesão no final de 1937.

Tudo isto nos leva, rapidamente para…

6) um pouco antes do logo depois da vírgula.

René Daumal morre de tuberculose a 21 de Maio de 1944, com 36 anos, em Paris. Deixa a vida como deixou o seu Monte Análogo, com uma vírgula.




(VOZ)

BREVE  REVELAÇÃO SOBRE A MORTE E  O  CAOS
Tu que te esqueceste de ti nesse túmulo movente,
é a mim que falo e o meu duplo mata-me,
no ar estátua de sal e na água bolha,
quando o céu se juntar ao oceano,
o sal na água omnipresente sem membros distintos
e sem coração e sem nome, diluído – sou eu?
és tu, a bolha devolvida ao ar
sem a sua pele de prata?
Uma voz última, a nossa,
para esvaziar todas as lágrimas de uma só vez,
e nem eu nem tu, atenção:
A  BOCA  TERÁ  COMIDO  A  ORELHA, 
A  VOZ  VERÁ.


O Contra-Céu, agora traduzido para português por Lurdes Júdice, é a prova de que logo depois da vírgula, a voz de René Daumal continua entre nós, a fascinar-nos.

*

Este livro é fruto de um alinhamento espontâneo de estrelas. Queríamos dedicar este momento à Lurdes Júdice. Agradecer ao Mattia Denise pelos magníficos desenhos do livro — Mattia o fiel interlocutor de Daumal a um outro Grupo de marginais, e cujo livro O Contra-Céu, confidenciou-nos, marcou definitivamente a vida. Quisemos resgatar esta experiência deixando-a registada emocionalmente no livro. E ainda agradecer ao Bruno Humberto por ser a Palavra escondida que se procurava. E à a Sala por nos acolher e ser nosso cúmplice.


︎︎︎︎︎︎


No âmbito do lançamento do livro O Contra-céu, de René Daumal.





Tuesday Oct 5 2021