Capa mole c/ impressão
a
tipos de chumbo, offset, dimensões, 32 pp.,
500 exemplares.
Para já para já
Vitor Silva Tavares
textos: Para Já Para Já e Contumácia por Vitor Silva Tavares,
Nota dos editores d’Editor por Rui de Almeida Paiva.
desenho: Inês Botelho
design: Flatland design
︎esgotado
Reza a história que Para já para já, obra sem
paradeiro ao longo das últimas quatro décadas, se evaporou com total autonomia
escassos minutos após desovar para os lados do «Monte Carlo». Em rigor e com
rigor, pelo que consta, o próprio autor colaborou na trapaça. Apagou-lhe
exemplarmente o rasto. Bico calado foi o suficiente?
Confiante do seu golpe, longe estava de imaginar que nestes tempos peculiares em que vivemos, Para já para já pudesse ser exumado, por assim dizer, do caixão. Não previu, entre possíveis imponderáveis, que as leis elementares do Livreiro, em ocasionais momentos felizes, convivem com os procedimentos do Arqueólogo – resgatar entre centenas de caixões abandonados num armazém da Sá da Costa um livro que, em vez de vir do passado se dirige para o presente, é obra!
Digamos que, ao anunciar que não quer ser literatura, Para já para já demonstra um compreensível desprezo pela morte. Pela morte do texto ficcional e do próprio autor enquanto autor. Prosa que assume, despreocupadamente e sem licenças, pedir de empréstimo o corpo de Vitor Silva Tavares por umas breves páginas.
«Este é um texto datado. Tem a data inscrita nele e tudo: são cinco e quarenta da tarde, do dia 2 de novembro de 1972. Datado e ainda assim actual. Na aparência, é um texto escrito num jacto, entre a irritação e a ironia, num país propício a que se vomitem palavras. Para já para já desconfia da literatura como quem desconfia de comida rançosa.» Carlos Vaz Marques, «Para já para já», Livro do Dia TSF (24.10.2012)
«Vitor vem receber-nos: Rua da Emenda, n.º 30. Por detrás da porta pesada, portentosa, surge um homem franzino, altura considerável, cabelo e barba branca. Cordial, duas ou três palavrinhas, e descida até à cova, buraco, poço (fica poço). Algo introspetivo, de colherzinha de plástico deambulando pela boca para prolongar o sabor do café bebido no quiosque do Camões (ou para enganar o vício infindável: baforadas que travava no cigarro como se fosse o último, antes do próximo), segue escadas abaixo, mãos atrás das costas, até desaguar no pátio, quase etc.
Vitor atira-se para o poço, e nós, desobedecendo à mãezinha, também nos atiramos… Lá inseridos, somos confrontados com a escuridão, para, lentamente, ser-nos revelado que o poço é forrado de prateleiras em tudo idênticas a andaimes, vigas, alicerces (fica alicerces) de suspender livros. Simpatizo logo com os livros suspensos.
Sentamo-nos. O trabalho é despachado em vinte minutos. Seguidamente, o ar sério e rigoroso que ocupou o seu rosto enquanto tratávamos do livrinho – correções, revisões, reflexões (fica reflexões) – desvanece-se. O peso das suas costas, de uma só vez, é lançado para as costas da cadeira. Ficamos também a postos. E vemos como, apanhando a ponta de um qualquer adjetivo que para ali surgiu casualmente, o Vitor lança-lhe isco, puxa do anzol e diz: “isto faz-me lembrar…”»
Rui de Almeida Paiva, «Para Vitor Silva Tavares»
Para já para já foi originalmente publicado pelo «Jornal do Fundão», composto e impresso nas suas oficinas em Novembro-Dezembro de mil novecentos e setenta e dois.
Confiante do seu golpe, longe estava de imaginar que nestes tempos peculiares em que vivemos, Para já para já pudesse ser exumado, por assim dizer, do caixão. Não previu, entre possíveis imponderáveis, que as leis elementares do Livreiro, em ocasionais momentos felizes, convivem com os procedimentos do Arqueólogo – resgatar entre centenas de caixões abandonados num armazém da Sá da Costa um livro que, em vez de vir do passado se dirige para o presente, é obra!
Digamos que, ao anunciar que não quer ser literatura, Para já para já demonstra um compreensível desprezo pela morte. Pela morte do texto ficcional e do próprio autor enquanto autor. Prosa que assume, despreocupadamente e sem licenças, pedir de empréstimo o corpo de Vitor Silva Tavares por umas breves páginas.
«Este é um texto datado. Tem a data inscrita nele e tudo: são cinco e quarenta da tarde, do dia 2 de novembro de 1972. Datado e ainda assim actual. Na aparência, é um texto escrito num jacto, entre a irritação e a ironia, num país propício a que se vomitem palavras. Para já para já desconfia da literatura como quem desconfia de comida rançosa.» Carlos Vaz Marques, «Para já para já», Livro do Dia TSF (24.10.2012)
«Vitor vem receber-nos: Rua da Emenda, n.º 30. Por detrás da porta pesada, portentosa, surge um homem franzino, altura considerável, cabelo e barba branca. Cordial, duas ou três palavrinhas, e descida até à cova, buraco, poço (fica poço). Algo introspetivo, de colherzinha de plástico deambulando pela boca para prolongar o sabor do café bebido no quiosque do Camões (ou para enganar o vício infindável: baforadas que travava no cigarro como se fosse o último, antes do próximo), segue escadas abaixo, mãos atrás das costas, até desaguar no pátio, quase etc.
Vitor atira-se para o poço, e nós, desobedecendo à mãezinha, também nos atiramos… Lá inseridos, somos confrontados com a escuridão, para, lentamente, ser-nos revelado que o poço é forrado de prateleiras em tudo idênticas a andaimes, vigas, alicerces (fica alicerces) de suspender livros. Simpatizo logo com os livros suspensos.
Sentamo-nos. O trabalho é despachado em vinte minutos. Seguidamente, o ar sério e rigoroso que ocupou o seu rosto enquanto tratávamos do livrinho – correções, revisões, reflexões (fica reflexões) – desvanece-se. O peso das suas costas, de uma só vez, é lançado para as costas da cadeira. Ficamos também a postos. E vemos como, apanhando a ponta de um qualquer adjetivo que para ali surgiu casualmente, o Vitor lança-lhe isco, puxa do anzol e diz: “isto faz-me lembrar…”»
Rui de Almeida Paiva, «Para Vitor Silva Tavares»
Para já para já foi originalmente publicado pelo «Jornal do Fundão», composto e impresso nas suas oficinas em Novembro-Dezembro de mil novecentos e setenta e dois.
︎︎︎︎︎︎
Disse para comigo: tu és um magnífico escritor (o melhor!) sempre que não
escreves; por isso vais escrever uma plaquette (sempre dá menos
trabalho) e aproveitas para exibires o horror da escrita, a chatice da escrita,
a doença da escrita, a inutilidade da escrita, enfim, a alegria da escrita, o
prazer quase sexual da escrita, a sem-cerimónia da escrita, esta escrita.
(...)
Sobre poetas, basta-me a minha experiência. É a única que conheço em primeira mão.
Devo então começar pelo princípio:
Papel, peço muita desculpa, aguenta o mau jeito. Já a minha mãe dizia: logo havia de me sair um poeta, era só o que me faltava. Creio que ela queria que eu fosse doutor, doutor de qualquer coisa: acho que tinha muita razão (ou não fosse mãe), um doutor é um doutor, pessoa que trabalha para o quadro na parede e o progresso da sociedade, enquanto um poeta é um mangas com a psique avariada, de certo modo parasita, coisa sobrevivente e pouco e mal. Como não podia ser doutor (acho que nunca fui rico nem uma inteligência nem bafejado pelas sucessivas vitórias da vontade), comecei a escrever sonetos para a Néné, sonetos à Bocage, num caderno de papel almaço com uma rosa na página de rosto pintadinha a gouache cisne. A mãe, pouco sensível aos tremeliques da minha vocação, abarbatou-me o sonetório e, Ana Magnani da Rua das Madres, afinfou-me com umas vassouradas. Pronto: contrariado, já não havia nada a fazer. Daí para a frente fui sempre para pior. Também não me importo: vingo-me no papel, ora toma. Transfiro a minha incapacidade de acção para estas letras, aliás uma desgraça. Deu-me praqui. O mal é meu, muito obrigado.
Vitor Silva Tavares, Para já para já
(...)
Sobre poetas, basta-me a minha experiência. É a única que conheço em primeira mão.
Devo então começar pelo princípio:
Papel, peço muita desculpa, aguenta o mau jeito. Já a minha mãe dizia: logo havia de me sair um poeta, era só o que me faltava. Creio que ela queria que eu fosse doutor, doutor de qualquer coisa: acho que tinha muita razão (ou não fosse mãe), um doutor é um doutor, pessoa que trabalha para o quadro na parede e o progresso da sociedade, enquanto um poeta é um mangas com a psique avariada, de certo modo parasita, coisa sobrevivente e pouco e mal. Como não podia ser doutor (acho que nunca fui rico nem uma inteligência nem bafejado pelas sucessivas vitórias da vontade), comecei a escrever sonetos para a Néné, sonetos à Bocage, num caderno de papel almaço com uma rosa na página de rosto pintadinha a gouache cisne. A mãe, pouco sensível aos tremeliques da minha vocação, abarbatou-me o sonetório e, Ana Magnani da Rua das Madres, afinfou-me com umas vassouradas. Pronto: contrariado, já não havia nada a fazer. Daí para a frente fui sempre para pior. Também não me importo: vingo-me no papel, ora toma. Transfiro a minha incapacidade de acção para estas letras, aliás uma desgraça. Deu-me praqui. O mal é meu, muito obrigado.
Vitor Silva Tavares, Para já para já
VITOR SILVA TAVARES (1937-2015) foi jornalista, escritor, crítico, tradutor e editor
português, fundador da Editora &etc. Fez crítica de cinema na Flamae no Jornal de Letras, foi editor na Ulisseia (1964-67). Em 1967, edita
com José Cardoso Pires a magazine de letras, artes e espetáculos, &etc. Em
1974, cria a Editora &etc, com sede em Lisboa, onde edita e por vezes traduz
uma coleção de livros única no panorama editorial português.